"Ou você é livre, ou você não é. Ou você é livre e a coisa é autêntica, real, viva, ou não é nada." (A humilhação, Philip Roth)

sábado, 30 de outubro de 2010

Texto da amiga Luciana Duccini

Memórias esparsas da migração sem fim

Em muitas ocasiões, as memórias antigas que me vêm são um pouco mais doces, mas nesse exato momento elas foram varridas para algum canto obscuro. São os debates do entorno que as fazem retornar amargas e cheias de rancor. Mas não se trata de um rancor pequenino, vindo das muitas feridinhas pessoais. Trata-se de amargor mais vago, porém mais vasto, acordado pela invasão dos ouvidos por velhos ódios. Explico-me. Cresci na grande locomotiva produtiva, orgulho de um país que se queria branco e norte-americano. A velha Europa já era, então, um museu de ideais decadentes e socialismos mal ou bem acabados. Em meio aos nossos infinitos quilômetros de asfalto preto, incontáveis blocos de concreto empilhados, imensuráveis paredes de vidro espelhado e canais domesticando rios, fomos ensinados a reconhecer nossa superioridade de “povo”. Um povo que mantinha suas plantas, animais, crianças e “outros” sob minucioso cuidado em seus canteiros bem demarcados. Bem diferente daquela “sub raça” a quem alimentávamos com a caridade do suor de nosso labor, era o que nos diziam. Não nós! Os industriosos, trabalhadores incansáveis que acordavam cedo para ficar parados no trânsito. E com nossos impostos, ora veja, alimentávamos os subnutridos, preguiçosos, analfabetos que invadiam os cantos de nosso paraíso industrial.

Eram, nos diziam, por natureza assim: incapazes de cuidar da própria vida e vinham aos magotes, nos meios mais precários para enfeiar nossas praças. Evidentemente, não tinham cultura nem preparo psicológico para se adequar à dura realidade do trabalho cotidiano e responsável. Por certo, desse modo, nunca conseguiam se inserir completamente em um dos muitos postos de trabalho oferecidos a quem estendesse a mão. Quando dotados de certa energia ainda serviam para algo, como domésticas, babás, diaristas, pedreiros, porteiros. Aquela gente feia e ignorante com a qual éramos obrigados a conviver para que não morressem de fome, já que ali estavam. Não resta sombra de dúvida que, por exemplo, uma babá ideal, além de branca, seria formada em pedagogia. De preferência, filha de uma boa família de nossas relações, mas o que se faria, então, dos milhões de nordestinos que haviam invadido a metrópole?

Uma das primeiras cenas de desprezo pelo outro de que me lembro ocorreu quando eu tinha cerca de onze ou doze anos. Havia viajado de férias para a casa de avós de amigos, que não chegava a ser um sítio, mas tinha uma família de caseiros. Um tarde, após o lanche, nos encontrávamos todos na sala de televisão, crianças e adultos juntos. O caseiro entrou para falar algo com o patrão, terminou o assunto de trabalho e teve sua atenção captada pelo programa que, então, se apresentava. Muito generoso, o avô de meus amigos, lhe convidou para assistir ao programa. Agachado num canto da sala. Mais tarde, repreendido pela própria filha, o senhor explicou: “em minha casa, empregado, se quiser sentar, senta no chão”.

Era assim que essas pessoas encontravam trabalho na metrópole que, sonharam, as afastaria da pobreza de um país ainda dominado por grandes coronéis sem patente alguma. Chegavam na imensa cidade domesticada, mas para elas não havia lugar. Iam buscá-los nas fímbrias das ocupações bem construídas. Por vezes, bairros próximos e decadentes onde se podia encontrar imóveis abandonados por donos que, evidentemente, não precisavam deles no momento em que seu valor de mercado estava baixo. Ou onde havia espaços vazios suficientes para que se erguessem as paredes de madeira e papelão que lhes serviriam de abrigo. Ao passar de carro, fechávamos os vidros. Os rostos se espreitavam mutuamente, mas medo era só o que se trocava. Lembro-me bem da região das avenidas do Estado e Ricardo Jafé. Todas aquelas pessoas na beira da rua, pois não havia calçada, homens, mulheres, crianças, suas janelinhas de compensado colorido, seus tetos de Eternit e o modo como observávamos uns aos outros. Eles, talvez, apenas pensando quando poderiam ter um carro igual ao do meu pai. Eu, porém, me perguntando porque eram tão estranhos. Quando questionados, os adultos me diziam: “são os pobres”. Mas por que são pobres? “Porque não têm trabalho”. Mas por que não têm trabalho? “Porque não estudaram.” Mas por que não estudaram? “Por que têm muitos filhos”. Pela minha idade, imagino que o ilustre dr. Elcimar Coutinho já havia concluído, ou estava concluindo, seu curso de medicina e se preparando para propagar a esterilização de mulheres pobres como forma de responder às “minhas” inquietações.

É conveniente acrescentar que essas minhas memórias são de uma época em que ainda vivíamos sob a ditadura militar. Residindo no ABC Paulista, tive o privilégio de assistir, pelas frestas das janelas, algumas manifestações das Grandes Greves. Para mim eram momentos de emoções confusas, mistura de medo, excitação e incompreensão. Minha mãe sempre explicava que os trabalhadores lutavam por salários justos e melhores condições de trabalho. Parecia-me altamente razoável, mas mesmo assim, ficávamos sem ir à escola. Dizia-se – uma criança não consegue identificar fontes de boatos – que, se saíssemos às ruas, os trabalhadores em greve virariam nosso carro e nos apedrejariam. Nunca entendi o porquê. Afinal, não éramos nós que lhes pagávamos maus salários. Por que haveríamos de ser suas vítimas? Pelo sim, pelo não, minha mãe preferia seguir a multidão apavorada e trancada em casa. Enquanto isso, meu pai ficava morando na fábrica. Um dia chegava um motorista para, rapidamente, pegar a mala que minha mãe havia preparado e não sabíamos em quantos dias ele iria voltar. Naquela época, sendo ele um homem justo, eu achava que estaria defendendo os salários dos operários. Para meu grande desapontamento, descobri depois, que negociava pela fábrica. Foi quando aprendi que pessoas muito boas podem estar do lado errado.

O medo que sentíamos dos trabalhadores só podia ser comparado àquele de quando fugiam presidiários em julgamento no Fórum em frente ao qual morávamos. Os policiais corriam a avisar aos vizinhos e, novamente, nos trancávamos em casa. Nunca ouvi um tiro sequer, mas o terror se concretizava nas janelas fechadas em pleno dia.

Esses operários a quem temíamos, por mera questão lógica, não poderiam ser aquelas pessoas que eu via à porta de seus barracos, já que possuíam empregos, logo deveriam ter estudado alguma coisa, logo não deveriam ter tantos filhos. Mas, no estereótipo das massas perigosas, todos se misturavam: os rostos magros, muitas vezes pretos e sujos dos que moravam nos casebres à beira das avenidas ou embaixo dos viadutos e aqueles dos que vestiam macacões. É a receita do medo difuso e persistente do outro que não é como eu, mas que eu nem sei em que não é como eu. É esse medo que vejo ressurgir hoje, com imensa tristeza. É esse medo que vejo nos blogs que falam das famílias que vivem do “bolsa miséria”, na demissão da psicanalista Maria Rita Kehl, nas mensagens que nos ameaçam com rosto difuso de índios misturados com Hugos Chaves. É o medo que fala sobre “os rincões do Brasil”, onde felizmente, hoje, vivo.

Como eu me libertei desse medo, não tenho certeza, mas acho que foi quando comecei a me tornar uma migrante. Muito antes de mudar de Estado, quando as freiras do meu colégio nos levaram para montar uma escolinha na favela do Heliópolis – que não durou muito tempo graças ao pânico gerado entre mães, a minha foi exceção, justiça seja feita – ou quando fiz amizade com alguns punks do ABC, ou quando abandonei a Publicidade pelas Ciências Sociais. Talvez tenha sido na Bahia, quando comecei a fazer trabalho de campo nas periferias distantes que a classe média soteropolitana nem sabe onde fica. Enfim, não importa, o que importa é que o meu medo hoje virou ao contrário: tenho medo que o ódio à diferença vença. Tenho medo dos discursos vazios e inflamados que a direita nos lança ao rosto, como se eu, que saí do lugarzinho estreito que ocupava, não soubesse do que falo e eles sim. Tenho memória, meus senhores, e por mais que eu migre, ela me acompanhará.

Luciana Duccini

Professora e cidadã