"Ou você é livre, ou você não é. Ou você é livre e a coisa é autêntica, real, viva, ou não é nada." (A humilhação, Philip Roth)

sábado, 26 de novembro de 2011

Memória

Eu valorizo a memória. Eu lembro muito, sou conhecida por lembrar. Às vezes acho que é uma qualidade, às vezes acho que não é.
Mas é fato, eu aprecio a memória. Esta semana Eliane Brum escreveu em sua coluna (http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/11/lembrar-para-esquecer.html)  que  é preciso poder lembrar para poder esquecer. Eu não poderia estar mais de acordo. O que não pode ser lembrado, não pode ser dito, tão pouco pode ser esquecido. Só é possível esquecer aquilo que é possível ser lembrado. Nas histórias das pessoas, nas histórias das coletividades, a máxima também vale. Faz tempo, no mestrado, eu aprendi que, segundo M. Halbwachs, a memória é seletiva e sempre construída a partir do presente, com base em valores, comportamentos e experiências atuais. Por isso uma história de vida pode ser reinterpretada, isto é, pode ser lembrada de maneiras distintas em distintos momentos da vida daquele/daquela que conta a história. E não é que o relato da memória seja mentira, ilusão, nada disso. O relato muda porque nós mudamos e a maneira como descrevemos o que vivemos também muda conosco. Essa é a beleza, podemos lembrar de fatos, aromas, sabores, de tantas coisas, de modos distintos ao longo de nossas vidas. 
Mas toda memória que é negada impede a transformação. Toda memória que é banida impede a elaboração do que se viveu e a construção do novo. Casualmente, esta semana assisti a dois documentários sobre memória. O primeiro se chama La columna de los ocho mil (http://www.rebelion.org/noticia.php?id=138679&titular=la-columna-de-los-ocho-mil-), sobre um massacre acorrido na região de Badajoz, Espanha, em 1936. O filme mostra como muitos acontecimentos da guerra civil espanhola ainda são nebulosos, foram "apagados", e é como se não tivessem acontecido. O filme é impressionante, talvez ainda mais porque eu nunca tinha ouvido falar desse massacre... O outro filme se chama Arquivos da cidade (O filme tem 29 minutos, é de 2009, foi realizado por Luciana Knijnik e Felipe Diniz. Tem como tema principal os movimentos de resistência à ditadura civil-militar (1964-1985) que atuaram em Porto Alegre/RS. O documentário põe em cena experiências vividas por cinco militantes e um familiar de desaparecido.). O filme brasileiro fala de um massacre e violências dos quais já ouvi falar. No entanto, embora eu já tenha presenciado relatos sobre experiências de tortura vividas durante o período da ditadura no Brasil, sempre que vejo um filme, ou leio um algum relato, a sensação de horror se instala e é como se estivesse tomando contato com essas histórias pela primeira vez. 
O que é claro em ambos os filmes é que, em especial para os que sobreviveram, ter que lidar com as suas memórias e com o "esquecimento" coletivo é excruciante. É algo que dá um tom de irrealidade ao que viveram. E sofrem mais uma violência sem par. A uma certa altura do filme espanhol, um pesquisador conta que o processo de "banimento da lembrança", dos fatos relativos à coluna, foi a tal ponto eficiente que muitas pessoas chegam a dizer que a coluna e o massacre nunca aconteceram, mas ao serem mencionados alguns fatos, as pessoas começam a dizer: Sim, claro! Eu me lembro!! E aí dão detalhes sobre o que viram, ouviram ou viveram. Nada mais violento que tentar eliminar a memória. Porque ela não morre, alguém sempre irá lembrar. Aqui, na Espanha, ou em qualquer lugar, a memória é o que nos permite ser/estar no mundo. Um dos militantes contra a ditadura que deu seu relato no filme brasileiro, diz, não exatamente com essas palavras, que é quem é porque viveu tudo o que viveu, isso faz parte de quem ele é, do seu pior e do seu melhor. O que interessa é a ideia aqui colocada, a de que a memória nos faz quem somos. Ignorar a memória é ignorar o que, quem e porque somos.