"Ou você é livre, ou você não é. Ou você é livre e a coisa é autêntica, real, viva, ou não é nada." (A humilhação, Philip Roth)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

La fiesta de las Ñatitas

Dia 08 de novembro aconteceu a festa das Ñatitas no Cementerio General de La Paz. Mais uma vez, fiquei muito surpresa e impressionada com a festa... de novo eram velhos, crianças, adultos e jovens que lotavam o cemitério. As Ñatitas são caveiras, crânios humanos, que as pessoas guardam em suas casas. A ideia é que as caveiras protegem a casa e seus moradores. Os crânios tem nome, história de vida e gostos. As pessoas levam as caveiras para o cemitério e lá oferecem a elas flores, velas, bebidas, cigarros, incenso, comida, o que elas gostam mais e, claro, também música. Inclusive dançam para as caveiras... curioso é pouco!! Tirei muitas fotos de caveiras diferentes, porque elas são "arrumadas" de modos muito diferentes. Algumas tem gorros com seus nomes, podem ter bonés (que ás vezes também tem os nomes das caveiras), óculos escuros... enfim... às vezes as pessoas as mantem em urnas de vidro e assim as levam até o cemitério, lá as retiram das urnas e as dispõem de modo que todos as vejam. Então se sentam ao lado, ou próximas às suas Ñatitas, rezam por elas e ficam ali, como numa espécie de exposição. Enquanto estão ao seu lado, famílias inteiras, de velhos a nenês, podem ficar contemplando as Ñatitas, fumando com elas (claro que as crianças não fumam...), dançando (mas dançam...) ou, o que me pareceu mais uma vez incrível, podem comer com elas. Vi famílias inteiras almoçando ao lado de suas Ñatitas e conversando animadamente, como se estivessem em um parque e não em um cemitério.
O cemitério estava bem cheio, porque pessoas que não tem Ñatita também vão ao cemitério, levando coisas para oferecer às Ñatitas alheias... Qualquer um pode oferecer algo a uma caveira, de coroas de flores, comida a cigarros. É simples, é só aproximar-se, cumprimentar o dono/a da caveira e perguntar o nome da Ñatita. Isto é muito importante, porque ao saber o nome da caveira a pessoa estabelece uma relação com ela, via "apresentação" feita por intermédio do dono/a da caveira, claro. Às vezes a conversa se alonga, com o dono da Ñatita explicando quem era, com que idade e como morreu, enfim, dando detalhes sobre a caveira quando era um vivo...
Eu ofereci um cigarro para a caveira de uma cholita idosa que arrumava sua Ñatita e todas as coroas de flores caíram, achei que era um bom momento para me aproximar, já que ela estava sozinha e, claramente, estava precisando de ajuda... Aí perguntei: Puedo oferecerle un cigarrillo? E ela: Si, claro!! Nesta hora se aproximou também uma senhora boliviana, que não tinha Ñatita, mas estava mais por dentro das coisas, e perguntou: Cómo se llama? E a cholita: Alberto. A senhora enquanto ouvia o nome, começou a colocar uma coroa de flores na Ñatita, comida e a realizar uma espécie de conversa com "Alberto"... Eu, então perguntei: Cómo hago? E a senhora: Tienes que encender el cigarrillo e ponerlo en su boquita. E assim, sob o olhar contente da cholita, eu o fiz. Acendi o cigarro, ajeitei na "boca" da caveira e a cholita sorrindo disse: Le gustan harto los cigarrillos!! Lo va fumar en un ratito!!! Eu sorri, me despedi da cholita e do "Alberto" e fui embora. Pelo sim, pelo não, achei bom fazer uma oferenda... como dizem por aqui, por si acaso... Afinal, nunca se sabe, né?!
Segundo a "tradição", pelo que pude ler no jornal La Razón, dia 08 é o dia em que definitivamente os vivos se despedem dos espíritos dos mortos, dos ajayus. Depois de uma visita que se inicia ao meio dia do dia 01 de novembro.
Até o ano passado as pessoas entravam com as suas caveiras na Igreja do cemitério e era realizada uma missa na presença das caveiras e em intenção de todas elas, depois o padre aspergia água benta e abençoava as Ñatitas e seus donos. Este ano a Igreja se recusou a realizar a missa e, já no dia 02, haviam cartazes anunciando que no dia 08 não seriam realizados serviços religiosos, ou seja, não haveria missa. As pessoas não estavam nada contentes com isso... Aliás, estavam um tanto revoltadas... Mas, o que se há de fazer?? Se a Igreja não quer, que seja sem ela... No entanto, como houve um falecimento, a Igreja foi aberta. Mesmo assim não foi permitido que as pessoas entrassem na Igreja com as suas Ñatitas.
Conversando sobre as Ñatitas com Luz Castillo, a antropóloga que trabalha com os pesquisadores associados do MUSEF e que tem me ajudado a encontrar arquivos e fazer contatos para a pesquisa, descobri mais um monte de coisas sobre esta "tradição". Ela me disse que ás vezes as Ñatitas estão numa família há muitas gerações, podendo ser inclusive algum antepassado, mas que também existe um tráfico de crânios, o que implica em violações de sepulturas. Em geral, o melhor é que se ganhe uma Ñatita, não se deve comprá-la. Mas, eventualmente, as pessoas as compram... Luz me explicou que alguns pesquisadores já tentaram pesquisar sobre isso, mas que as pessoas não gostam de falar sobre as suas Ñatitas e o modo como se relacionam com elas. E existem pouquíssimos estudos sobre as Ñatitas e o que elas representam e tal. Também não se sabe de onde vem o costume, se é uma mistura de antigos costumes indígenas com a cultura espanhola, e nem desde quando é praticado. E, que, recentemente, o modo como as pessoas se relacionam com as ñatitas, como o tipo de pedidos que fazem a elas tem mudado muito, ano a ano.
O que se sabe é que o ajayu, que é o espírito, a parte imaterial de vivos e mortos, sempre está e permanece, mesmo depois da morte, na "cabeça", isto é, no crânio. Por isso, cada Ñatita é um espírito, contem um ajayu, daí seu poder.
Apesar do clima colorido e festivo no cemitério, o que mais uma vez me impressionou muitíssimo, as pessoas tendem a tratar as Ñatitas de modo bastante respeitoso. São realizadas orações católicas e, o que imagino (porque infelizmente não entendo a língua...) também sejam orações, em aymara, e, acho, posso dizer que é uma festa onde se pode notar, por trás do clima animado, que algo sério e poderoso se passa. Os cemitérios em muitas religiões, como as afrobrasileiras, são percebidos como um lugar de energia muito intensa e poderosa. Por isso, acho que não me engano ao dizer que apesar do clima festivo, cheio de cor e música, o que se passava era um ritual forte e cheio de significados. Quem sabe daqui uns anos eu consiga compreender estes significados... confesso que, ao saber da escassez de estudos sobre o tema, fiquei com coceira para pesquisar isso... rsrsrs Quem sabe minha amiga Lú Duccini, estudiosa do Candomblé, topa e daqui uns anos levamos uma pesquisa sobre as Ñatitas para frente?! Independente de vir ou não a pesquisar o tema, o que garanto é que NUNCA irei esquecer as coisas que vi e que senti no Cementerio General de La Paz no dia 08 de novembro de 2009, quando pela primeira vez pude ver e estar em uma Fiesta de las Ñatitas!!

2 comentários:

  1. adorei a hoistória das ^natitas. envie-nos fotos da festa.Guarda aalguma semelhança com a festa do mortos do México, não?
    bjs, marga

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  2. Marga,
    Tem semelhanças com o México, mas um amigo mexicano me garantiu que as diferenças sao maiores... as fotos estao no Picasa.
    Beijos

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